Existe tanta gente nas escolas secundárias a querer ingressar no curso de medicina. Dou-me conta disso em inúmeros blogs, em reportagens de televisão, nos jornais. Vão para Espanha, para a República Checa, fazem de tudo para ser médicos. Às vezes, acho que a maioria deles não sabe para o que vai, não sabe o que vai ser o seu quotidiano para o resto da vida.
Deixem-me ajudar-vos. Deixem-me falar no que se passa comigo todos os dias, desde que entro no hospital. Deixem-me contar-vos o que vejo nas enfermarias e na urgência. O bom e o mau. O que me faz continuar e o que me faz duvidar. Deixem-me ter a conversa que gostaria que tivessem tido comigo há 12 anos atrás.
Os médicos fazem bancos. Às vezes uma vez, muitas vezes duas, por vezes 3 vezes por semana. Os bancos de 24 horas custam. Custam anos de vida. Eu faço sempre bancos de 24 horas. Começam às 8 horas de manhã e só se pára para comer. O tempo não passa lentamente. O tempo passa a correr porque escorrega-nos por entre os dedos das mãos. Não há tempo para fazer tudo o que é urgente. E quando acaba o banco, de novo às 8 da manhã, começa um novo dia, ou seja, temos que ir para a enfermaria ou para a consulta continuar a trabalhar.
Preparem-se para ver e fazer coisas repugnantes. Pús, expectoração, diarreia e vómitos são constantes diárias. Toda a gente fala do sangue, mas o sangue é o mais limpo com que deparamos. Temos que fazer toques rectais (sim, enfiar o dedo no rabo dos outros), observar doentes imundos (os sem-abrigo também vêm à urgência). E há cheiros inacreditáveis no ar, a suor, a urina fétida, a melenas (fezes com sangue).
A população está velha, tão velha que ninguém no mundo exterior tem essa noção. Porque os velhos estão em lares, e só saem de ambulância para irem para o hospital. E acumulam-se em macas e mais macas nos serviços de urgência dos hospitais. E os velhos não falam, não respondem, não riem. Estão num mundo só deles, cheios de febre e de expectoração.
Os familiares estão cada vez mais exigentes, a um ponto insuportável. Têm uma atracção inacreditável pelo livro amarelo, essa nova instituição de Portugal. Esse dogma da figura do médico intocável e admirado, simplesmente já não existe. Somos (e ainda bem…) profissionais como outro qualquer, a quem é suposto cobrar pelo bom ou mau desempenho. Parece que andamos sempre com a cabeça na guilhotina, à espera do primeiro erro.
O dinheiro. É claro que há médicos que ganham muito dinheiro. Não o vou negar. Não é, obviamente, o meu caso. Escolhi uma especialidade (a medicina interna) de sacrifício e pouco lucro. Que me perdoem outras especialidades, mas nunca conseguiria tratar só olhos, ou só pele a vida toda. Estudei medicina para tratar o corpo todo. Estudei medicina para tratar enfartes e pneumonias, avc’s e anemias. O doente é um ser e não é pedaços dele próprio. E na minha especialidade, trabalha-se nos hospitais públicos a servir a população. E o estado não é grande patrão, como todos nós sabemos.
Mas apesar de tudo a medicina é fantástica. Permite experiências que mais nenhuma profissão permite. Emociona-te, faz-te chorar e rir. Chegamos a casa cansados mas satisfeitos. Quantas pessoas ajudámos, quantas pessoas melhorámos. E mesmo os doentes que pioram, ou que morrem, sabemos que foi tudo feito, que a vida é assim mesmo.
Por isso vos digo, não hesitem. Vão em frente. Tudo o que é mau, acaba por passar. O que está bem, fica para sempre. Se se sentem preparados, é porque estão. Se se sentem com dúvidas ou receios, não há nada que a experiência não esbata ou anule. Cá nos encontramos. Até breve.